EPISTEMOLOGIA I
1o
semestre de 2012-01-27
Prof. Antonio
A Serra
Conteúdo do curso: Epistemologia, filosofia da
ciência e história da ciência – A matriz grega do pensamento científico – A
Revolução Científica: a revolução astronômica, a questão do movimento e o
modelo mecanicista de ciência – A ciência do iluminismo – As correntes de
pensamento do século 19 e a ciência – A crise do modelo mecanicista – Ciência,
tecnologia e sociedade
Apresentação geral: anexamos ao final um texto de
apresentação geral do curso. Os interessados em outros esclarecimentos ou
sugestões podem escrever para serra.amaral@hotmail.com
Bibliografia
a) Apresentação geral da Revolução
Científica:
·
John Henry, A
Revolução Científica e as Origens da Ciência Moderna, ed. Jorge Zahar, Rio,
1998, trad. Maria Luiza X. de A. Borges
b) Obras clássicas de História da
Ciência:
·
Alexandre Koyré, Do
Mundo Fechado ao Universo Infinito, ed. Forense, SP, 1979, trad.
Donaldson M. Grashangen
·
Alexandre Koyré, Estudos
de História do Pensamento Científico, ed. Forense, RJ, 1982, trad. Márcio
Ramalho
·
Alexandre Koyré, Estudos
de História do Pensamento Filosófico, ed. Forense, SP, 1991, trad. Maria de
Lourdes Menezes
·
Alexandre Koyré, Galileu
e Platão e Do Mundo do “Mais ou Menos” ao Universo da Precisão, ed.
Gradiva, Lisboa, s.d., trad. Maria Teresa Brito Curado
·
Benjamin
Farrington, A Ciência Grega, ed. Ibrasa, SP, 1961
·
Paolo Rossi, A
Ciência e a Filosofia dos Modernos, ed. UNESP, SP, 1992, trad. Álvaro
Lorencini
·
Paolo Rossi, O
Nascimento da Ciência Moderna na Europa, ed. EDUSC, Bauru, SP, 2001, trad.
Antonio Angonese
·
Paolo Rossi, Los
Filósofos y lãs Máquinas – 1400-1700, ed. Labor, Barcelona, 1966,
trad. José Manuel García de La Mora
·
Thomas Kuhn, A
Estrutura das Revoluções Científicas, ed. Perspectiva, SP, 2011, trad.
Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira
·
Thomas Kuhn, A revolução copernicana: a astronomia
planetária no desenvolvimento do pensamento Ocidental. Lisboa: Edições 70,
1990
·
Thomas Kuhn, A tensão essencial. Lisboa: Edições
70, 1989
·
Thomas Kuhn, O Caminho desde a Estrutura, ed.
UNESP, SP, 2006, trad. Cesar Mortari
c) Obras de
filósofos do início da idade moderna
·
Francis Bacon, Novum Organum, col. Pensadores, ed.
Nova Cultural, várias edições, trad. José
Aluysio Reis de Andrade. Versão digital: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/norganum.html
·
Francis Bacon, A Nova Atlântida - A Grande Instauração,
ed. Edições 70, Lisboa, 2008
·
Descartes, O Discurso do Método Versão digital: http://www.psbnacional.org.br/bib/b39.pdf
·
Descartes, Regras para a Direção do Espírito, (a) ed.
Martim Claret; (b) ed. Martins Fontes, SP, 1999, trad. Maria Ermantina Galvão
d) Aspectos
Filosóficos e Axiológicos
·
Ernst Cassirer, Indivíduo e Cosmos na
Filosofia do Renascimento, ed. Martins Fontes, SP, 2001, trad. João Azenha
Jr
·
Ernst Cassirer, A Filosofia do Iluminismo,
ed. UNICAMP, Campinas, 1997, trad. Álvaro Cabral
·
Ernst Cassirer, El Problema del
Conocimiento, volumes I e II, ed. Fondo Cultura Económica, México, trad.,
Wenceslao Roces
·
Edwin A. Burtt, As Bases Metafísicas da
Ciência Moderna, ed. UnB, Brasília, 1991, trad. José Viegas Filho e Orlando
Araujo Henriques
·
Hugh Lacey, Valores
e Atividade Científica – 1, ed. 34, SP, 2008, trad. Marcos Barbosa de
Oliveira e Carlos Eduardo Ortolan Miranda
·
Hugh Lacey, Valores
e Atividade Científica 2 – ed. 34, SP, 2010, trad. Marcos Barbosa de
Oliveira, Gustavo Sigrist Betini, Marcos Rodrigues da Silva, Renato Rodrigues
Kinouchi, Maria Inês Rocha e Silvia Lacey
·
Max Weber, Ciência
e Política – Duas Vocações, ed. Martim Claret, 2006. Versão digital: http://www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf
·
Alfred North
Whitehead, A Ciência e o Mundo Moderno, ed. Paulus, SP, 2006
·
Werner
Heisenberg, Física e Filosofia, ed. UnB, Brasília, 1961
·
Max Born, Pierre
Auger, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg, Problemas da Física Moderna,
ed. Perspectiva, SP, 1969, trad. Gita K. Ghinzberg
·
Erwin
Schrödinger, A Natureza e os Gregos – Ciência e Humanismo, ed. Edições
70, Lisboa, 2003, trad. Jorge Almeida Pinto
·
Donald E. Stokes,
O Quadrante de Pasteur – A ciência básica e a inovação tecnológica, ed.
Unicamp, Campinas, 2005, trad. José Emílio Maiorino
e) Obras de Divulgação sobre Cientistas Antigos, Modernos e
Contemporâneos:
Ciência grega:
·
Hipócrates e a Arte da Medicina, Organização: A. H. de Oliveira Marques, ed. Colibri, Lisboa, 1999
·
Hipócrates, Aforismos, ed.. Martin
Claret
·
Albert Einstein e Leopold Infeld, A
Evolução da Física, ed.. Zahar,
·
Auterives Maciel Junior, Pré-Socráticos,
ed.. Odysseus
·
Marco Zingano, Platão & Aristóteles,
ed.. Odysseus
·
Carlos Tomei, Euclides, ed.. Odysseus
·
Jeanne Bendick, Arquimedes, ed.
Odysseus
Ciência Moderna
·
Bernardo
Jefferson de Oliveira, Francis Bacon e a Fundamentação da Ciência como
Tecnologia, ed. UFMG, Belo Horizonte, 2010
·
Ronaldo R. de Freitas Mourão, Kepler,
ed. Odysseus
·
Ronaldo R. de Freitas Mourão, Copérnico,
ed. Odysseus
·
Pablo R. Mariconda e Julio Vasconcelos, Galileu,
ed. Odysseus
·
Frederico Firmo de Souza Cruz, Faraday
& Maxwell, ed. Odysseus
·
Eduardo de Campos Valadares, Newton,
ed. Odysseus
·
Carlos Filgueiras, Lavoisier, ed.
Odysseus
·
Nelio Bizzo, Darwin, ed. Odysseus
Ciência do Século 20
·
Moacyr Scliar, Cruz & Chagas, ed.
Odysseus
·
Cássio Leite Vieira, Einstein, ed.
Odysseus
·
Maria Cristina B. Abdalla, Bohr, ed.
Odysseus
·
Augusto Daminelli, Hubble, ed.
Odysseus
·
Antonio F R Toledo de Piza, Schrödinger
& Heisenberg, ed. Odysseus
·
Ricardo
Ferreira, Watson & Crick, ed. Odysseus
·
Rogério
Rosenfeld, Feyman & Gell-Mann, ed. Odysseus
Entidades brasileiras de estudos sobre filosofia e história
da ciência
·
Associação Filosófica Scientiæ
Studia
·
Sociedade Brasileira de
História da Ciência (SBHC)
www.sbhc.org.br/
·
Scientia – História
da Ciência
·
Associação de
Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC)
·
Associação
Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)
·
Grupo de História e Teoria da Ciência - Unicamp
·
Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência
·
Centro de Lógica,
Epistemologia e História da Ciência — CLE
www.cle.unicamp.br
Apresentação
geral
I.
- O termo epistemologia é usado tanto para designar o estudo do
conhecimento em geral, como do conhecimento científico em
particular. Nossas aulas abordarão a epistemologia nessa segunda acepção, que
também pode ser denominada de filosofia da ciência[1].
Ora, a identificação particular do chamado conhecimento “científico”
é relativamente recente, pois a distinção principal que os filósofos gregos
faziam era entre episteme e doxa, isto é, entre conhecimento justificado
e conhecimento opinativo[2].
Desse modo, durante séculos de tradição intelectual as palavras episteme
(grega) e scientia (latina) foram usadas para se referir ao conhecimento
que efetivamente alcança a verdade ou à crença que pode ser
adotada como verdadeira porque está fundamentada e justificada racionalmente,
ao contrário de todas as demais pretensões de conhecimento. Já no pensamento
medieval, a distinção marcante foi entre a verdade alcançada pela fé
(isto é, a fé na verdade revelada por Deus aos seres humanos) e a
verdade proporcionada pela razão (isto é, a verdade alcançada pelos
seres humanos apenas com os recursos de sua própria razão). Enfim, na idade
moderna se enfatizou a demarcação entre os campos que, em nossa terminologia
atual, poderiam ser identificados como filosofia, ciência e teologia.
O que foi dito até agora nos leva a considerar que a
distinção substantiva entre filosofia e ciência é um acontecimento
que faz parte do processo histórico que se convencionou chamar de
Revolução Científica[3].
Nos século 17 e 18, multiplicaram-se as vozes daqueles que consideravam os
procedimentos “filosóficos” tradicionais estéreis e reclamavam a adoção de
novos métodos de investigação para se alcançar certeza comprovada nos
conhecimentos sobre a natureza. Tornou-se usual o título de filósofo natural
para designar esse novo tipo de profissional do saber, enquanto que os
termos “cientista” e “físico”, por exemplo, só foram adotados no século 19.
Mas, sem dúvida, Bacon, Descartes, Galileu, Newton e muitos outros pretendiam
estar construindo e trilhando caminhos originais de pensamento e método para
chegar a conhecimentos muito mais seguros e certos do que a “filosofia” pudera
até então obter e até mesmo para corrigir os erros e refutar definitivamente as
doutrinas dos “filósofos” ou refutar a censura dos “teólogos”. A expectativa
criada por esses e diversos outros “homens de ciência” foi o que conferiu
fundamento para o movimento iluminista do século 18, augurando uma nova
era na história, livre da superstição, do medo imaginário e do despotismo, com
a humanidade doravante munida dos meios de análise e comprovação de
conhecimentos que, finalmente, elevariam a consciência a um grau de compreensão
inédito e permitiriam atender às necessidades vitais com maior conforto e
justiça.
II.
- A contribuição mais impactante da ciência desses filósofos naturais
foi sobre a questão do movimento, oferecendo um tratamento que rompeu
radicalmente com a abordagem que remontava a Aristóteles[4].
A ciência da mecânica, que tinha por objeto o movimento e a atuação de
forças sobre os corpos, trouxe como novidade a intensa matematização dos
fenômenos físicos e a adoção sistemática da observação, da mensuração
e da experimentação como procedimentos decisivos para obter informações
e testar teorias sobre a natureza. Para conhecer não bastava mais contar com os
sentidos e a inteligência e, assim, uma crescente variedade de instrumentos foi
sendo forjada para ampliar a capacidade sensorial, para medir, produzir ou
simular fenômenos. Graças a isso, chega-se a uma renovação profunda da mais
antiga das ciências, a astronomia, confere-se fundamento mais sólido à
concepção de Copérnico e criam-se os ingredientes para o modelo mecanicista
de explicação da natureza. De fato, a definição de leis capazes de
descrever, medir, correlacionar e prever movimentos com rigorosa
precisão matemática foi um dos fatores responsáveis pela consagração crescente
do modelo mecânico; além disso, as confirmações empíricas dessas leis e de suas
previsões, bem como sua abrangência em todo o universo, pareciam
oferecer uma teoria dotada de consistência, amplitude, capacidade explicativa e
beleza até então inexistentes na história[5].
O mecanicismo começou, pois, a atrair a atenção de áreas ainda incipientes,
especialmente as ligadas aos fenômenos da vida, do psiquismo e da sociedade,
cujos estudiosos passaram a tentar entender desde a estrutura anatômica até os
movimentos do mercado, passando pelas emoções, sob a ótica dos mesmos sistemas
de força e leis do movimento propostos pela ciência da mecânica[6].
Essas inovações, que vinham se mostrando exitosas e capazes
de abrir campos cada vez mais largos de conhecimento, repercutiram
profundamente no campo da filosofia, motivando filósofos a incorporá-las em
suas doutrinas, suscitando novos problemas, tencionando o ambiente intelectual
até o extremo de uma crise que justamente motivou a gestação de uma nova
filosofia (“crítica”) por Immanuel Kant, no final do século 18[7].
Kant, que sempre acompanhou e escreveu sobre os desenvolvimentos dessa
filosofia natural, reconheceu e saudou seus avanços, propondo-se a produzir um
“choque epistemológico” na filosofia para que esta adquirisse algumas das
qualidades que a “ciência natural” demonstrava como valiosas. O que ele
esperava de sua proposta de revolução copernicana no âmago da filosofia
era que esta se tornasse capaz, como a matemática ou a física, de alcançar
conhecimentos sólidos não mais sujeitos às imediatas e intermináveis
contestações de outros pensadores, como, segundo ele, era a situação costumeira
na filosofia[8].
III.
- Como estamos nos referindo a processos históricos, é importante
assinalar que essas idéias ganharam tal prestígio que a separação e divergência
de destinos entre ciência e filosofia foi se institucionalizando,
inclusive nas universidades e centros de pesquisa. Contudo, como era de se
esperar, o respeito à “ciência” de Galileu e Newton não era unânime e, em
meados do século 18, ganharam corpo discordâncias sobre a validade do modelo ou
paradigma mecanicista. Para citar um exemplo, o grande escritor e pensador
alemão Goethe, que era também dedicado às “ciências” naturais, expôs críticas à
teoria das cores de Newton e propôs nova abordagem dos fenômenos físicos e dos
fenômenos da vida[9].
Segundo Goethe, a teoria newtoniana afirmava que as cores estão todas
misturadas, “contidas” e “latentes” na luz (branca), bastando o raio de luz atravessar
o prisma para que imediatamente as cores apareçam no espectro; ora, dizia
Goethe, as cores não são um fenômeno físico e só aparecem quando seres
humanos exercem seu sentido da visão. Independente da validade dessa concepção
goethiana, ela exemplifica essa postura crítica ao modelo mecanicista ao
acusá-lo de reduzir a natureza à estrita objetividade física e, com
isso, excluir o sujeito do processo natural.
Esse
foi um aspecto central do movimento romântico, de enorme influência na
Europa desde a segunda metade do século 18 até meados de 1840 e francamente
oposto ao iluminismo, podendo mesmo ser considerado uma crítica à própria
modernidade européia[10].
Dado o papel dos philosophes franceses como intérpretes do iluminismo e
ainda mais por conta da resistência desencadeada pela ofensiva de Napoleão por
toda a Europa, o romantismo granjeou entusiástica audiência na Alemanha e na
Inglaterra, onde promoveu o chamado retorno à natureza[11].
Para os românticos, aquela ciência mecanicista possuía inúmeros defeitos, além
da exclusão do sujeito humano: ela privilegiava a divisão e o seccionamento dos
seres e não sua unidade, por isso tendo na análise (o grande instrumento
da racionalidade cartesiana) seu principal instrumento metodológico; ela
pretendia reduzir todos os fenômenos a processos mecânicos, ao invés de
partir do fluxo vital que anima e enlaça sem descontinuidade toda
a natureza, tanto orgânica quanto inorgânica; ela provocava o afastamento entre
ser humano e natureza e, sobretudo, destinava o conhecimento ao domínio
da natureza e, com isso, empobrecia o ser humano, limitado à condição de
“senhor” e “amo” da natureza[12].
Mas os românticos não se restringiram à crítica, buscando desenvolver uma
modalidade de pesquisa científica que atendesse aos seus princípios de unidade,
totalidade, sentido e integração homem-natureza[13].
O grande geógrafo e naturalista alemão Alexander Von Humboldt foi exemplo
marcante dessa corrente: para ele, a abordagem do cientista natural devia ser estética,
pois a sensibilidade subjetiva do cientista que observa, descreve e
interpreta os fenômenos naturais é um componente essencial que faculta alcançar
o âmago da forma das coisas e das suas articulações no todo do cosmos.
Ou seja, a ciência “romântica” fazia da contemplação não apenas seu
método principal (oposto à “dissecação” das coisas), como sua finalidade
(contemplar, e não dominar, a natureza)[14].
IV.
- Paralelamente ao romantismo, desenvolveu-se, também na Alemanha, a
corrente denominada de filosofia da natureza, cujo idealizador principal
foi o filósofo Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling. Embora favorável ao uso
da experimentação e dos procedimentos empíricos para o conhecimento da
natureza, Schelling discordava do reducionismo inerente ao mecanicismo, isto é,
para ele o orgânico não se reduz ao inorgânico e mecânico, pois o
organicismo é a característica e propriedade fundamentais do mundo objetivo:
em outras palavras, a vida não é a culminância de um desenvolvimento que começa
na materialidade físico-química, mas ela é o princípio de toda a natureza.
Assim, a ciência newtoniana da mecânica perderia sua condição de solo e o
conhecimento da natureza teria que começar pela biologia, a ciência que trata
das formas mais avançadas do orgânico, aspecto que reforça a genealogia
que alguns autores detectam entre a filosofia alemã e a teoria biológica de
Darwin, conforme assinalamos em nota anterior[15].
V.
- Em seguida ao esmorecimento do romantismo, por volta de 1840 surgiu outra
tendência que, em grande parte, retoma o espírito do iluminismo francês. A filosofia
positivista concebida por Augusto Comte entendia que o êxito de certas
ciências (especialmente a matemática e a mecânica ou física
newtoniana) autorizava a deixar como coisa do passado a abordagem “metafísica”,
como etapa historicamente superada, cabendo agora se consagrar à filosofia
positiva, única baseada no espírito científico e, por isso, a ser
enaltecida como o apogeu da consciência humana. Esta vertente caracterizou-se
pela tentativa de elaborar uma filosofia não mais nas bases tradicionais
do que se denominava “metafísica” (conhecimento puramente especulativo dado por
ele como incerto e mesmo fantasioso) e sim consolidar-se com apoio nas
conquistas das “ciências” (conhecimento certo, “positivo”, comprovado pela
aplicação sistemática dos sentidos).[16]
VI.
- É oportuno registrar a importância do romantismo e do positivismo no
Brasil, não só em nossa produção artística e estética, como na filosofia em
geral e da ciência em particular, além do notório envolvimento desses dois
movimentos com nossa história política, da independência, do império e da
república. Olhando para a atualidade de modo simplista, enquanto o positivismo
parece ser a mentalidade dominante da comunidade científica, o romantismo
alimenta a dissidência ou oposição ao que entendem ser a “ciência dominante”,
inclusive quanto aos seus desdobramentos industriais, tecnológicos e seus
efeitos ambientais[17].
Apenas
para assinalar a influência desses dois movimentos na mentalidade dominante no
Brasil a respeito da ciência, mencionamos, primeiramente, Gonçalves de
Magalhães, considerado o introdutor do romantismo no Brasil com a publicação em
1836 de Suspiros Poéticos e Saudades. Magalhães formou-se em medicina e
buscou aperfeiçoamento científico na Europa, onde se “converteu” ao romantismo.
Ainda na Europa, fundou a revista “Nitheroy” (sua cidade natal), destinada à
promoção da literatura romântica e da cultura em geral, inclusive científica
(em seu primeiro e único número há um artigo de astronomia sobre cometas). No
Brasil, Magalhães ocupou a cátedra do Colégio Pedro II e defendia a tese de ser
impossível reduzir a atividade racional e espiritual superior do ser humano a
aspectos físicos e químicos, propondo a clara distinção entre “psicologia” e
“fisiologia”. Em segundo lugar, transcrevemos uma passagem do clássico A
Cultura Brasileira, obra de Fernando de Azevedo publicada em 1940 sob
auspícios do governo brasileiro. Ao considerar as causas do atraso brasileiro
nas ciências e o descompasso da cultura científica com a cultura literária,
Azevedo diz o seguinte:
“Quando
irrompeu entre nós, desenvolvendo-se de 1840 a 1870, a corrente do romantismo
que é, na sua essência, uma exaltação lírica da sensibilidade e uma revolta
contra o real quando ele perturba essa exaltação, não encontrou, nos indivíduos
desprotegidos contra si mesmos, para resistir à tendência ao subjetivismo, esse
hábito de reflexão e de objetividade que costumam desenvolver as ciências
matemáticas, -- instrumento de raciocínio por excelência, e as ciências físicas
– o instrumento, por excelência de investigação. No mundo intelectual
brasileiro em que se praticavam as letras, sem o complemento e o contrapeso das
ciências, o romantismo, -- esse poderoso rio de poesia que por toda parte
arrastava muitas escórias nas suas ondas soberbas --, tinha de forçosamente
acentuar a velha tendência colonial à literatura e ao subjetivismo, arrebatando
todos os valores e devastando tudo à sua passagem como uma torrente de montanha
....”[18]
Sabemos,
por outro lado, como a sensibilidade estética pela natureza, própria do
romantismo, influenciou não só nossa pintura paisagista e o romance, como
alimentou as incursões de naturalistas país adentro e as discussões de homens
de ciência sobre a população brasileira, sua composição e futuro, tema tão
marcante em nossa história política e intelectual.
Em
relação ao positivismo, sua manifesta ênfase nas ciências “positivas”
naturalmente o indispunham com o beletrismo dos românticos, porém, segundo
Antonio Paim, além do positivismo ter freado “o desenvolvimento em todos os
sentidos da meditação filosófica empreendida pela Escola do Recife, em nome da
exaltação do saber científico”, ele tampouco “contribuiu para a criação de
institutos devotados ao ensino ou à pesquisa das ciências (....) Na verdade,
longe de haver acompanhado a evolução do próprio pensamento científico
contemporâneo, manteve-se a mentalidade positivista brasileira adstrita a uma
conceituação oitocentista da ciência”[19].
Como
última menção, as considerações abaixo ilustram a interação entre o pensamento
biologizante europeu de feição darwinista, a escola literária do naturalismo e
as polêmicas travadas no Brasil sobre a “formação da nacionalidade” e o
problema demográfico:
“Sob o influxo do naturalismo, em geral, e
do darwinismo social, em particular, o biológico foi adotado no período
como modelo epistemológico cientificamente legítimo de explicação da realidade
social, configurando, assim, idéias como a de uma luta universal dos organismos
pela sobrevivência e, derivação necessária, de uma hierarquia natural que
dividiria a humanidade em raças superiores e inferiores. Tomando
esses dogmas como leis científicas, não apenas a intelectualidade
brasileira, mas a latino-americana em geral, formulou uma série de diagnósticos
sobre o trágico destino reservado às nações egressas do sistema colonial em
função das suas constituições étnicas – teses aprendidas no Ensaio sobre a
desigualdade das raças (1853) do publicista do colonialismo europeu Arthur
de Gobineau (1816-82)[20].
As anotações
acima tem como único objetivo despertar a atenção para “o nosso lado do palco”
onde se desenrolava a história intelectual européia em torno da questão do
conhecimento e da ciência, tema que convida a estudos e pesquisas cada vez mais
necessárias.
VII.
- O “descredenciamento” da filosofia tradicional e (como era apodada) da
“metafísica”, vistas agora como despidas de efetiva capacidade de conhecimento,
levaria pura e simplesmente à sua extinção como proposta cognitiva ou à sua
absorção pelas especialidades “científicas” propriamente ditas. Diante dessas
possibilidades, muitos então propuseram uma finalidade própria à filosofia: a
de examinar, avaliar, criticar e fornecer os fundamentos para as ciências.
Desse ponto de vista, os “filósofos” disporiam daquilo que, segundo eles,
faltaria aos “cientistas”, isto é, a consciência dos pressupostos do
conhecimento.
Não esqueçamos que o século 19 foi profundamente marcado
pelo kantismo, responsável, como dissemos, pela atitude de limitação do
alcance da filosofia, visto que a razão seria incapaz de alcançar o que está
além dos sentidos, isto é, a essência, a coisa-em-si ou númeno das coisas.
Desse modo, um dos campos que “restavam” com legitimidade à filosofia era, além
da estética e da ética, o do conhecimento. Nessa direção encontramos, a
partir de 1850, os chamados neokantianos, corrente cujo propósito,
segundo Farráter-Mora, foi o “de superar tanto o positivismo e o materialismo
como o construtivismo da filosofia romântica mediante uma consideração crítica
das ciências e uma fundamentação gnoseológica [isto é, não ontológica ou
metafísica] do saber”[21].
Outra tendência importante (parcialmente afim do
neokantismo) foi representada pelos chamado neopositivismo, também
conhecido como empirismo lógico, e cujo núcleo gerador levou o nome de Círculo
de Viena, cujo projeto, contrário aos procedimentos especulativos da
filosofia alemã idealista daquele tempo, era o de constituir uma filosofia
científica que fornecesse uma linguagem científica apta a evitar os
pseudo-problemas da metafísica e capaz de explicitar as condições de sua
verificação empírica. Destarte, além do apuro do método experimental,
propunha-se agora incorporar as recentes conquistas da lógica e da matemática,
cujos recursos formais eram então vistos como contribuições decisivas
para esse novo espírito científico[22].
VIII.
– As descobertas e teorias sobre os fenômenos da eletricidade, do magnetismo,
do calor e da luz que alvoroçaram o século 19, levaram pouco a
pouco ao esgotamento do que temos denominado de paradigma mecanicista da
física. Nem a carga elétrica parecia se comportar de acordo com as leis da
mecânica, tampouco o entendimento da luz ora como feixe de partículas, ora como
onda era possível de ser alcançado com a teoria mecânica. Ou seja, o postulado
da redução de todos os fenômenos naturais a princípios mecânicos, que havia
sido o lema da vitória da ciência moderna, encontrava agora seus limites, o que
provocou o abalo desse modelo. Por outro lado, desenvolvimentos igualmente
notáveis na matemática, modificaram as concepções sobre espaço, entidade que
era uma das sustentações do modelo mecânico. É verdade que as dificuldades de
abordar fenômenos biológicos com a física e a química apenas também contribuiu
para certo desprestígio do modelo mecanicista. Foi neste ambiente (e no qual o
Círculo de Viena desempenhou importante papel) que se deu a emergência da nova
física, com a apresentação da teoria dos quanta e da teoria da relatividade,
cujas consequências filosóficas e epistemológicas foram inúmeras
e ainda estão em pauta.
IX.
- Mas a “novidade” da filosofia natural de Galileu e de tantos outros nomes
do início da idade moderna não deve nos fazer esquecer que essa história, como
toda história, não é feita apenas de rupturas, mas também de continuidades. Em
outras palavras, algumas das fontes da “revolução científica” dos séculos 16 e
17 remontam aos séculos 14 e 13 da Europa medieval. Na verdade, se quisermos
apreciar tal “revolução científica” sob o ângulo de uma continuidade histórica,
seremos levados a reconhecer que as brilhantes realizações “precursoras” de
sábios medievais, tanto europeus quanto os de cultura islâmica, desempenharam
também papel decisivo de preservação e atualização do legado grego. Sem esse
legado, seria impossível aos “filósofos naturais” da idade moderna confiar na
capacidade humana de conhecer a natureza por seus próprios meios intelectuais,
pois foram a filosofia e a “ciência” antigas que os exploraram e
sistematizaram. Recordemos que a matemática, antes de ser usada para medir e
calcular os corpos e fenômenos naturais, foi, talvez, o empreendimento mais
ousado da razão helênica, fornecendo credibilidade aos procedimentos dedutivos
e formais que os “filósofos” tentaram aplicar no plano discursivo, entre eles
Descartes.
Por outro lado, a abordagem empírica da natureza
(valorizando, sobretudo, a observação e a descrição minuciosa) é um dos legados
aristotélicos e estava no cerne do método da escola hipocrática da
medicina grega, cuja influência se mostrou marcante nos estudos de biologia.
Os modernos também se familiarizaram com as áreas em que os
gregos fizeram convergir o procedimento teórico-dedutivo e o método empírico,
como se deu na astronomia, na teoria musical ou “harmonia” e na arquitetura.
Caberia ainda mencionar o papel que a teoria atômica de Lêucipo, Demócrito e
Epicuro desempenhou no início da idade moderna.
Desse modo, ao nos debruçarmos sobre a novidade da revolução
científica e de seus desdobramentos surpreendentes no mundo contemporâneo,
somos inevitavelmente convidados a visitar os inventivos e majestosos
sustentáculos que, a partir do século 7 A.C., foram sendo construídos pelos
helenos.
X.
- Uma dimensão da ciência que devemos mencionar é a sua chamada finalidade prática.
Embora tenhamos exemplos da antiguidade greco-romana da aplicação de
conhecimentos científicos em atividades eminentemente práticas (da guerra, da
indústria, da arquitetura), parece que, por motivos ainda não suficientemente
esclarecidos, predominou a finalidade contemplativa do conhecimento.
Ora, a idade moderna começou com a saudação de Francis Bacon às invenções da
bússola, da imprensa e da pólvora, como prólogo de sua teoria explícita sobre a
finalidade prática das ciências[23].
Em sua utopia de uma cidade da ciência, Nova Atlântida, obra em que
delineia o modelo do que posteriormente foram as grandes instituições
científicas da era moderna, ele assim descreve seu propósito: “A finalidade de
nossa instituição é o conhecimento das causas e movimentos secretos das coisas;
e o alargamento das fronteiras do domínio humano para a realização de tudo o
que for possível”[24].
No mesmo diapasão, merece
transcrevermos o trecho eloqüente do Discurso do Método onde Descartes justifica o valor da ciência:
“....
Mas, tão logo adquiri algumas noções gerais relativas à Física, e, começando a
comprová-las em diversas dificuldades particulares1, notei até onde
podiam conduzir, e o quanto diferem dos princípios que foram utilizados até o
presente, julguei que não podia mantê-las ocultas, sem pecar grandemente
contra a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de
todos os homens. Pois elas me fizeram ver que é possível chegar a
conhecimentos que sejam úteis à vida, e que, em vez dessa Filosofia
especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática,
pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros,
dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como
conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da
mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar
como que senhores e possuidores da natureza. O que é de desejar, não só para a
invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer
custo, os frutos da terra e de todas as comodidades que nela se acham, mas
principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro
bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida; pois mesmo o espírito
depende tanto do temperamento, e da disposição dos órgãos do corpo que, se é
possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais avisados e
mais hábeis do que foram até aqui, creio que é na Medicina que se deve
procurá-lo. É verdade que aquela que está agora em uso, contém poucas coisas
cuja utilidade seja tão notável; mas, sem que alimente nenhum intuito de
desprezá-la, estou certo de que não há ninguém, mesmo entre os que a professam,
que não confesse que tudo quanto nela se sabe é quase nada, em comparação com o
que resta a saber, e que poderíamos livrar-nos de uma infinidade de moléstias,
quer do espírito, quer do corpo, e talvez mesmo do enfraquecimento da velhice,
se tivéssemos bastante conhecimento de suas causas e de todos os remédios de
que a Natureza nos dotou”[25].
Tudo isso é mais significativo ainda
se lembrarmos as palavras de Aristóteles
no início da Metafísica ao dizer que os seres humanos só puderam se
dedicar efetivamente ao saber puramente contemplativo depois de terem
satisfeito as demandas básicas da sobrevivência e do conforto:
“....
E também é lógico que, tendo sido descobertas numerosas artes, umas voltadas
para as necessidades da vida e outras para o bem-estar, sempre tenham sido
julgados mais sábios os descobridores destas do que os daquelas, porque seus
conhecimentos não eram dirigidos ao que é útil. Daí resulta que, quando já se
tinham constituído todas as artes desse tipo, passou-se à descoberta das
ciências que visam nem ao prazer nem às necessidades da vida, e isso ocorreu
primeiramente nos lugares em que primeiro os homens se libertaram de ocupações
práticas. Por isso as artes matemáticas se constituíram pela primeira vez no
Egito. De fato, lá era concedida essa liberdade à casta dos sacerdotes”[26]
E, mais adiante:
“De
fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da
admiração [thaumatzein], na medida em que, inicialmente, ficavam
perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a
pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas
relativos aos fenômenos da Lua e aos do Sol e dos astros, ou os problemas
relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de
dúvida e de admiração reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele
que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído
por um conjunto de coisas admiráveis. De modo que, se os homens filosofaram
para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento
unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. E o modo como
as coisas se desenvolveram o demonstra: quando já se possuía praticamente tudo
o de que se necessitava para a vida e também para o conforto e para o
bem-estar, então se começou a buscar essa forma de conhecimento. É evidente,
portanto, que não a buscamos por nenhuma vantagem que lhe seja estranha; e,
mais ainda, é evidente que, como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo
e não está submetido a outros, assim só esta ciência, dentre todas as outras, é
chamada livre, pois só ela é fim para si mesma”[27].
Desse
modo, não é possível entender a emergência e o desenvolvimento da ciência
moderna sem atentar para essa profunda mudança de rumos que entronizou a finalidade
prática como um componente essencial do saber científico. Ainda nos reportando
a Francis Bacon, ele diz que “o império do homem sobre as coisas se apóia
unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão
obedecendo-a”[28].
Essa vertente tecnológica (isto é, do saber técnico propriamente
dito) só pode se afirmar porque a idade moderna começou reduzindo
significativamente a distância entre o “alto saber” do filósofo natural e o
“saber vulgar” do artesão e homem prático através, como diz o historiador da
ciência Paolo Rossi, através de um “processo que levou a uma nova valorização
das artes mecânicas e do trabalho dos técnicos, que culminou no reconhecimento
da função exercida pelos artesãos e pelos engenheiros no seio da cultura e da
sociedade”[29].
E acrescenta Rossi:
“....
esta nova valorização – produto de uma nova realidade histórica – tornou
possível a colaboração entre cientistas e técnicos e a combinação da técnica e
da ciência que está nas próprias raízes da grande revolução científica dos
seiscentos. A direção do movimento científico passará para os engenheiros, para
os experts, para os cavalheiros ‘de espírito científico’ do século XVII.
Os órgãos da nova cultura não serão doravante as universidades, mas as
sociedades científicas e as academias. O método científico não será um fim
em si que as investigações científicas se limitem a ‘ilustrar’; a ‘prova
prática’ terá um efeito decisivo até na elaboração das teorias mais gerais”[30].
[1]
Encontramos na Encyclopaedia Britannica a seguinte definição de filosofia
da ciência: “A filosofia da ciência tenta primeiramente elucidar os
elementos envolvidos na investigação científica -- procedimentos
observacionais, padrões de argumentação, métodos de representação e cálculo,
pressupostos metafísicos -- e então avaliar as bases de sua validade sob os
pontos de vista da lógica formal, da metodologia prática e da metafísica”. “Philosophy of science”, in
“Philosophies of the Branches of Knowledge”, Macropaedia, Ency. Brit.,
ed. 1980
[2]
Cf. em Platão, Teeteto: “Por isso, quando
alguém forma opinião verdadeira de qualquer objeto, sem a racional explicação,
fica sua alma de posse da verdade a respeito desse objeto, porém sem
conhecê-lo. Pois quem não sabe nem dar nem receber explicação de alguma coisa,
carece do conhecimento dessa coisa; porém se a essa opinião acrescentar a
explicação racional, então ficará perfeito em matéria de conhecimento”.
[3]
Pode-se denominar Revolução Científica ao período que simbolicamente
inicia em 1543 com a publicação do livro De Revolutionibus Orbium
Coelestium (Sobre as revoluções das esferas celestes), de Nicolau
Copérnico, e conclui em 1727, ano do falecimento de Isaac Newton. Este teria
sido o período em que foram elaboradas e assimiladas as grandes concepções
sobre o mundo natural (sobretudo as novas concepções da Astronomia, da Física e
da Matemática, mas também algumas importantes descobertas na Medicina e
ciências do organismo). Porém, mais que propriamente suas concepções da
natureza, foi neste período que se exercitou, apurou e consagrou o novo modo
de conhecimento, que pode ser definido pela síntese entre empirismo
experimental & matematização.
[4]
Não é demais lembrar que o tema do movimento foi um dos mais inquietantes da
filosofia grega: basta mencionar as idéias de Heráclito, a polêmica dos
Eleatas, especialmente os paradoxos de Zenon de Eléia, ou a Física, de
Aristóteles.
[5]
A suposição de uma força (a gravidade) responsável por estabelecer as
relações de atração e de influência recíproca entre todos e quaisquer
corpos do universo, desde grandes e distantes astros até partículas
microscópicas, e, além disso, a perfeição com que se podia calcular a
ação dessa força, foram ingredientes de um entusiasmo e admiração que hoje
temos dificuldade de sentir no mesmo grau. O universo, cujas dimensões
revelavam-se bem maiores do que antes se admitia, podia agora ser contemplado
de modo unificado e principalmente como obedecendo a leis absolutamente racionais.
Para alguns, era a demonstração da sabedoria divina ao criar o mundo com tal
racionalidade, enquanto, para outros, era a prova de não ser mais preciso
invocar a divindade para explicar o mundo, podendo-se confiar na razão
humana para a compreensão do mundo.
[6]
Deve-se a Descartes a primeira
formulação sistemática da abordagem mecânica da natureza. Porém, no
decorrer do século 18 o prestígio científico do cartesianismo cede à ascensão
da filosofia newtoniana, cuja divulgação na França por Voltaire e Émilie
du Châtelet contribuiu para
torná-la o núcleo da racionalidade científica do iluminismo.
[7]
Na Introdução à Crítica da Razão Pura, Kant define a crítica
assim: “De tudo isso resulta a idéia de uma ciência especial que pode
denominar-se Crítica da razão pura. (....) Uma tal ciência teria que se
denominar não uma doutrina, mas somente Crítica da razão pura, e sua
utilidade seria realmente apenas negativa com respeito à especulação, servindo
não para a ampliação, mas apenas para a purificação da nossa razão e para
mantê-la livre de erros, o que já significaria um ganho notável”. Immanuel
Kant, Crítica da Razão Pura, ed. Nova Cultural, SP, 1996, trad.Valério
Rohden e Udo Baldur Moosburger, Introdução, VII, página 65
[8]
No prefácio à 2ª. Edição da Crítica da Razão Pura, Kant afirma que a
Ciência da Natureza “foi pela primeira vez levada ao caminho seguro de uma
ciência, já que por muitos séculos nada mais havia sido que um simples tatear”,
atribuindo tal resultado ao cumprimento da proposta “do engenhoso Bacon”, em
outras palavras, “por uma revolução da maneira de pensar que a precedeu
subitamente”. É essa “revolução” que ele agora propõe seja exercida no campo da
“metafísica”, que esta “imite”, nesse aspecto, a ciência da natureza, “ao menos
como tentativa”. O motivo de seu apelo está no diagnóstico que faz da
metafísica, conhecimento racional que “não teve até agora um destino tão
favorável que lhe permitisse encetar o caminho seguro de uma ciência, não
obstante ser mais antiga do que todas as demais”. Desse modo, ao concentrar a
filosofia em uma tarefa estritamente crítica, o propósito de Kant não é
o de acrescentar novos conhecimentos, mas o de responder à pergunta: é possível
confiar na razão? Ora, para restaurar e renovar tal confiança na razão é
preciso depurá-la e conscientemente restringir seu domínio, enfim, renunciar a
uma filosofia onipotente e senhora de todos os campos de conhecimento em favor
de outra mais modesta, em troca, porém, mais clara, firme e mesmo útil em
garantir fundamentos para o que (limitadamente) se pode conhecer e para a
orientação moral humana.
[9]
Uma das fontes principais da preocupação filosófica com os fenômenos da
vida foi a “terceira crítica” elaborada por Kant e apresentada em sua Crítica
do Juízo, em 1790, obra de repercussão imensa e complexa, tanto no campo da
biologia como no da estética, sobretudo por conta do conceito de finalidade.
Goethe reconheceu o impacto dessa obra em seu pensamento e lhe atribuiu o
mérito de afastar as “absurdas causas finais” do estudo sobre a natureza. (Cf.
o prefácio de Marcos Giannotti à Doutrina das Cores, de Goethe, ed. Nova
Alexandria). Há, inclusive, quem identifique um elo histórico entre a Crítica
do Juízo de Kant, a filosofia da natureza alemã e as idéias de
Darwin. (Cf. Robert Richards,
“The impact of German Romanticism on Biology”[http://home.uchicago.edu/~rjr6/articles/Idealism%20&%20biology.pdf]
[10]
Segundo Michael Löwy e Robert Sayre, “o romantismo representa uma crítica da
modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna, em nome de valores e
ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno). Podemos dizer que, desde sua
origem, o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e
do ‘sol negro da melancolia’ (Nerval)”. In Michael Löwy e Robert Sayre, Revolta
e Melancolia – O romantismo na contramão da modernidade, ed. Vozes,
Petrópolis, 1995, trad. Guilherme João de Freitas Teixeira, página 34
[11]
Como se sabe, o suíço Jean-Jacques Rousseau, um apaixonado pela botânica,
anunciou esse “espírito romântico”, seu desgosto com o “progresso” e a
“modernidade” e seu encanto pela natureza e pelo é que é “natural”. “Para
Rousseau, a comunhão com a natureza afasta a pessoa da detestável sociedade de
homens competitivos, e liberta-a para alegrar-se abertamente num mundo que
expõe seus segredos a quem quer que lhe preste honesta atenção, despojado de
egoísmo ou de propósitos mercenários”. (in N. J. H. Dent, Dicionário
Rousseau, ed. Jorge Zahar, Rio, 1996, trad. Álvaro Cabral, verbete
“natureza”)
[12]
Um dos produtos dessa visão amarga e pessimista da ciência foi o romance de
Mary Shelley, Frankenstein: ou o Moderno Prometeu, nome, aliás, do
cientista e não do “monstro”, como acabou conhecido. Publicado em 1818,
tornou-se a fonte mais inspiradoras e persistentes da cultura de massas, assim
como o emblema da desconfiança em relação ao “cientista” arrostado pela paixão do
conhecimento e do poder sobre a natureza.
[13] Embora Goethe tenha sido crítico contumaz dos
românticos, a ele devemos a expressão clássica desse “dissabor” pela ciência que
está na passagem célebre do Fausto, quando Mefistófeles sentencia:
“Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, e verde é a árvore dourada da vida”.
Segundo esse ponto de vista, esposado por muitos dos românticos, a ciência
renunciava ao principal da vida em troca de um saber estático e utilitarista e,
sobretudo, profanador da natureza.
[14]
Muito interessante, a respeito, o livro de Lúcia Ricotta, Natureza, Ciência
e Estética em Alexander Von Humboldt, ed. Mauad, Rio, 2003
[15]
Desde o século 17 havia quem rejeitasse a pertinência do mecanicismo,
especialmente o cartesiano, para explicar os fenômenos vitais. O vitalismo
foi um conjunto de correntes muito variadas (desde as de inspiração hermética
até as mais cientificistas) cujo traço comum é supor a existência de um princípio
vital ou élan vital, irredutível a mecanismos fícico-químicos e
presente com exclusividade na matéria viva. O vitalismo, como era de esperar,
exerce até hoje influência na medicina e foi na época de seu florescimento na
Alemanha que Samuel Hahnemann (1755-1843) concebeu a homeopatia. Cf.
Regina Andrés Rebollo, Ciência e Metafísica na Homeopatia de Samuel
Hahnemann, ed. Associação Filosófica Scientia Studia-FAPESP, 2008
[16]
Para Comte, antes de alcançar o “estado positivo”, o espírito humano percorre
longamente o “estado teológico” e o “estado metafísico”: “No estado teológico,
o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza
íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam,
numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como
produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos
numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes
do universo. – No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que a
simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são
substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações
personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como
capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja
explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade
correspondente”. Auguste Comte, Curso de Filosofia Positiva, Abril
Cultural, 1ª. Ed., SP, 1973, trad. Arthur José Giannotti, página 10 (o negrito
é nosso)
[17]
A história das ciências no Brasil mostra os efeitos profundos da postura
antimoderna e de resistência à ciência por parte da mentalidade dominante na
península ibérica. Assim, somente com a reforma do ensino superior promovida
por Pombal e com as incursões de naturalistas europeus em terras do Brasil é
que, de fato, começa uma história contínua das ciências entre nós,
destacando-se figuras como Bartolomeu Lourenço (com suas experiências pioneiras
do aeróstato), o grande naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (autor da Viagem
Filosófica, onde registrou suas viagens entre 1783 e 1792 pelo Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e
Cuiabá, reunindo acervo natural e documental tão vasto que nem ele mesmo
conseguiu examinar por completo) ou José Bonifácio de Andrada e Silva
(mineralogista e engenheiro de minas respeitado na comunidade científica
européia).
[18]
Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira – Introdução ao estudo da cultura
no Brasil, ed. UnB, 4ª. Ed., Brasília, 1963, página 394
[19]
Antonio Paim, História das Idéias Filosóficas no Brasil, ed. Grijalbo,
SP, 1967, página 198
[20]
André Botelho, “Cientificismo à brasileira: notas sobre a questão
racial no pensamento social”, in
http://www.achegas.net/numero/um/andre_b.htm
[21]
Ferráter-Mora, Diccionário de
Filosofía, artigo “Neokantismo”
[22]
Ferráter-Mora, op. cit. , verbete
“Círculo de Viena”
[23]
“Vale também recordar a força, a virtude e as consequências das coisas
descobertas, o que em nada é tão manifesto quanto naquelas três descobertas que
eram desconhecidas dos antigos e cujas origens, embora recentes, são obscuras e
inglórias. Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear.
Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em
todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na
navegação. Daí se seguiram inúmeras mudanças e essas foram de tal ordem que não
consta que nenhum império, nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder
e exercido maior influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos
mecânicos”. Francis Bacon, Novum Organum, col. Os Pensadores, ed. Abril
Cultural, 1ª. Ed. , SP, 1973, trad. José Aluysio Reis de Andrade, I, CXXIX,
página 94
[24] Francis
Bacon, New Atlantis, ed. Encyclopaedia
Britannica, coleção Great Books, vol. 28, p. 210
[25]
Descartes, Discurso do Método,
Parte VI, in Descartes, Obra
Escolhida, ed. DIFEL, SP, 1962, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior,
pp. 91-92
[26]
Aristóteles, Metafísica, livro I:981b:15-25, trad. em português de
Marcelo Perine a partir da tradução do grego de Giovanni Reale, ed Loyola, 2002
[27]
Aristóteles, id. ib., 982b:10-25
[28]
Francis Bacon, Novum Organum, ib. página 94
[29]
Paolo Rossi, Los Filósofos y las Máquinas – 1400-1700, ed. Labor,
Barcelona, 1966, trad. José Manuel García de La Mora, página 39
[30]
Paolo Rossi, op. cit., página 40. Nesta passagem, Rossi se reporta a Alistair
Cameron Crombie (1915-1996), grande historiador da ciência, de naturalidade
australiana, autor de clássicos como Augustine to Galileo: The History of
Science A.D. 400 – 1650 e Robert Grossteste and the Origins
of Experimental Science, 1100-1700
Nenhum comentário:
Postar um comentário