quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Epistemologia I (Antônio Serra) - 2012.1


EPISTEMOLOGIA I
1o semestre de 2012-01-27
Prof. Antonio A Serra

Conteúdo do curso: Epistemologia, filosofia da ciência e história da ciência – A matriz grega do pensamento científico – A Revolução Científica: a revolução astronômica, a questão do movimento e o modelo mecanicista de ciência – A ciência do iluminismo – As correntes de pensamento do século 19 e a ciência – A crise do modelo mecanicista – Ciência, tecnologia e sociedade

Apresentação geral: anexamos ao final um texto de apresentação geral do curso. Os interessados em outros esclarecimentos ou sugestões podem escrever para serra.amaral@hotmail.com

Bibliografia
a) Apresentação geral da Revolução Científica:
·         John Henry, A Revolução Científica e as Origens da Ciência Moderna, ed. Jorge Zahar, Rio, 1998, trad. Maria Luiza X. de A. Borges

b) Obras clássicas de História da Ciência:
·         Alexandre Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, ed. Forense, SP, 1979, trad. Donaldson M. Grashangen
·         Alexandre Koyré, Estudos de História do Pensamento Científico, ed. Forense, RJ, 1982, trad. Márcio Ramalho
·         Alexandre Koyré, Estudos de História do Pensamento Filosófico, ed. Forense, SP, 1991, trad. Maria de Lourdes Menezes
·         Alexandre Koyré, Galileu e Platão e Do Mundo do “Mais ou Menos” ao Universo da Precisão, ed. Gradiva, Lisboa, s.d., trad. Maria Teresa Brito Curado
·         Benjamin Farrington, A Ciência Grega, ed. Ibrasa, SP, 1961
·         Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, ed. UNESP, SP, 1992, trad. Álvaro Lorencini
·         Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, ed. EDUSC, Bauru, SP, 2001, trad. Antonio Angonese
·         Paolo Rossi, Los Filósofos y lãs Máquinas1400-1700, ed. Labor, Barcelona, 1966, trad. José Manuel García de La Mora
·         Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, ed. Perspectiva, SP, 2011, trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira
·         Thomas Kuhn, A revolução copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento Ocidental. Lisboa: Edições 70, 1990
·         Thomas Kuhn, A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1989
·         Thomas Kuhn, O Caminho desde a Estrutura, ed. UNESP, SP, 2006, trad. Cesar Mortari

c) Obras de filósofos do início da idade moderna
·         Francis Bacon, Novum Organum, col. Pensadores, ed. Nova Cultural, várias edições, trad. José Aluysio Reis de Andrade. Versão digital: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/norganum.html
·         Francis Bacon, A Nova Atlântida - A Grande Instauração, ed. Edições 70, Lisboa, 2008
·         Descartes, O Discurso do Método Versão digital: http://www.psbnacional.org.br/bib/b39.pdf
·         Descartes, Regras para a Direção do Espírito, (a) ed. Martim Claret; (b) ed. Martins Fontes, SP, 1999, trad. Maria Ermantina Galvão

d) Aspectos Filosóficos e Axiológicos
·         Ernst Cassirer, Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento, ed. Martins Fontes, SP, 2001, trad. João Azenha Jr
·         Ernst Cassirer, A Filosofia do Iluminismo, ed. UNICAMP, Campinas, 1997, trad. Álvaro Cabral
·         Ernst Cassirer, El Problema del Conocimiento, volumes I e II, ed. Fondo Cultura Económica, México, trad., Wenceslao Roces
·         Edwin A. Burtt, As Bases Metafísicas da Ciência Moderna, ed. UnB, Brasília, 1991, trad. José Viegas Filho e Orlando Araujo Henriques
·         Hugh Lacey, Valores e Atividade Científica – 1, ed. 34, SP, 2008, trad. Marcos Barbosa de Oliveira e Carlos Eduardo Ortolan Miranda
·         Hugh Lacey, Valores e Atividade Científica 2 – ed. 34, SP, 2010, trad. Marcos Barbosa de Oliveira, Gustavo Sigrist Betini, Marcos Rodrigues da Silva, Renato Rodrigues Kinouchi, Maria Inês Rocha e Silvia Lacey
·         Max Weber, Ciência e Política – Duas Vocações, ed. Martim Claret, 2006. Versão digital: http://www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf
·         Alfred North Whitehead, A Ciência e o Mundo Moderno, ed. Paulus, SP, 2006
·         Werner Heisenberg, Física e Filosofia, ed. UnB, Brasília, 1961
·         Max Born, Pierre Auger, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg, Problemas da Física Moderna, ed. Perspectiva, SP, 1969, trad. Gita K. Ghinzberg
·         Erwin Schrödinger, A Natureza e os Gregos – Ciência e Humanismo, ed. Edições 70, Lisboa, 2003, trad. Jorge Almeida Pinto
·         Donald E. Stokes, O Quadrante de Pasteur – A ciência básica e a inovação tecnológica, ed. Unicamp, Campinas, 2005, trad. José Emílio Maiorino

e) Obras de Divulgação sobre Cientistas Antigos, Modernos e Contemporâneos:
Ciência grega:
·         Hipócrates e a Arte da Medicina, Organização: A. H. de Oliveira Marques, ed. Colibri, Lisboa, 1999
·         Hipócrates, Aforismos, ed.. Martin Claret
·         Albert Einstein e Leopold Infeld, A Evolução da Física, ed.. Zahar,
·         Auterives Maciel Junior, Pré-Socráticos, ed.. Odysseus
·         Marco Zingano, Platão & Aristóteles, ed.. Odysseus
·         Carlos Tomei, Euclides, ed.. Odysseus
·         Jeanne Bendick, Arquimedes, ed. Odysseus
Ciência Moderna
·         Bernardo Jefferson de Oliveira, Francis Bacon e a Fundamentação da Ciência como Tecnologia, ed. UFMG, Belo Horizonte, 2010
·         Ronaldo R. de Freitas Mourão, Kepler, ed. Odysseus
·         Ronaldo R. de Freitas Mourão, Copérnico, ed. Odysseus
·         Pablo R. Mariconda e Julio Vasconcelos, Galileu, ed. Odysseus
·         Frederico Firmo de Souza Cruz, Faraday & Maxwell, ed. Odysseus
·         Eduardo de Campos Valadares, Newton, ed. Odysseus
·         Carlos Filgueiras, Lavoisier, ed. Odysseus
·         Nelio Bizzo, Darwin, ed. Odysseus
Ciência do Século 20
·         Moacyr Scliar, Cruz & Chagas, ed. Odysseus
·         Cássio Leite Vieira, Einstein, ed. Odysseus
·         Maria Cristina B. Abdalla, Bohr, ed. Odysseus
·         Augusto Daminelli, Hubble, ed. Odysseus
·         Antonio F R Toledo de Piza, Schrödinger & Heisenberg, ed. Odysseus
·         Ricardo Ferreira, Watson & Crick, ed. Odysseus
·         Rogério Rosenfeld, Feyman & Gell-Mann, ed. Odysseus

Entidades brasileiras de estudos sobre filosofia e história da ciência
·        Associação Filosófica Scientiæ Studia
·        Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC)
www.sbhc.org.br/
·        Scientia – História da Ciência
·        Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC)
·        Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB)
·        Grupo de História e Teoria da Ciência - Unicamp
·        Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência

·        Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência — CLE

www.cle.unicamp.br


Apresentação geral
I. - O termo epistemologia é usado tanto para designar o estudo do conhecimento em geral, como do conhecimento científico em particular. Nossas aulas abordarão a epistemologia nessa segunda acepção, que também pode ser denominada de filosofia da ciência[1]. Ora, a identificação particular do chamado conhecimento “científico” é relativamente recente, pois a distinção principal que os filósofos gregos faziam era entre episteme e doxa, isto é, entre conhecimento justificado e conhecimento opinativo[2]. Desse modo, durante séculos de tradição intelectual as palavras episteme (grega) e scientia (latina) foram usadas para se referir ao conhecimento que efetivamente alcança a verdade ou à crença que pode ser adotada como verdadeira porque está fundamentada e justificada racionalmente, ao contrário de todas as demais pretensões de conhecimento. Já no pensamento medieval, a distinção marcante foi entre a verdade alcançada pela (isto é, a fé na verdade revelada por Deus aos seres humanos) e a verdade proporcionada pela razão (isto é, a verdade alcançada pelos seres humanos apenas com os recursos de sua própria razão). Enfim, na idade moderna se enfatizou a demarcação entre os campos que, em nossa terminologia atual, poderiam ser identificados como filosofia, ciência e teologia.
O que foi dito até agora nos leva a considerar que a distinção substantiva entre filosofia e ciência é um acontecimento que faz parte do processo histórico que se convencionou chamar de Revolução Científica[3]. Nos século 17 e 18, multiplicaram-se as vozes daqueles que consideravam os procedimentos “filosóficos” tradicionais estéreis e reclamavam a adoção de novos métodos de investigação para se alcançar certeza comprovada nos conhecimentos sobre a natureza. Tornou-se usual o título de filósofo natural para designar esse novo tipo de profissional do saber, enquanto que os termos “cientista” e “físico”, por exemplo, só foram adotados no século 19. Mas, sem dúvida, Bacon, Descartes, Galileu, Newton e muitos outros pretendiam estar construindo e trilhando caminhos originais de pensamento e método para chegar a conhecimentos muito mais seguros e certos do que a “filosofia” pudera até então obter e até mesmo para corrigir os erros e refutar definitivamente as doutrinas dos “filósofos” ou refutar a censura dos “teólogos”. A expectativa criada por esses e diversos outros “homens de ciência” foi o que conferiu fundamento para o movimento iluminista do século 18, augurando uma nova era na história, livre da superstição, do medo imaginário e do despotismo, com a humanidade doravante munida dos meios de análise e comprovação de conhecimentos que, finalmente, elevariam a consciência a um grau de compreensão inédito e permitiriam atender às necessidades vitais com maior conforto e justiça.

II. - A contribuição mais impactante da ciência desses filósofos naturais foi sobre a questão do movimento, oferecendo um tratamento que rompeu radicalmente com a abordagem que remontava a Aristóteles[4]. A ciência da mecânica, que tinha por objeto o movimento e a atuação de forças sobre os corpos, trouxe como novidade a intensa matematização dos fenômenos físicos e a adoção sistemática da observação, da mensuração e da experimentação como procedimentos decisivos para obter informações e testar teorias sobre a natureza. Para conhecer não bastava mais contar com os sentidos e a inteligência e, assim, uma crescente variedade de instrumentos foi sendo forjada para ampliar a capacidade sensorial, para medir, produzir ou simular fenômenos. Graças a isso, chega-se a uma renovação profunda da mais antiga das ciências, a astronomia, confere-se fundamento mais sólido à concepção de Copérnico e criam-se os ingredientes para o modelo mecanicista de explicação da natureza. De fato, a definição de leis capazes de descrever, medir, correlacionar e prever movimentos com rigorosa precisão matemática foi um dos fatores responsáveis pela consagração crescente do modelo mecânico; além disso, as confirmações empíricas dessas leis e de suas previsões, bem como sua abrangência em todo o universo, pareciam oferecer uma teoria dotada de consistência, amplitude, capacidade explicativa e beleza até então inexistentes na história[5]. O mecanicismo começou, pois, a atrair a atenção de áreas ainda incipientes, especialmente as ligadas aos fenômenos da vida, do psiquismo e da sociedade, cujos estudiosos passaram a tentar entender desde a estrutura anatômica até os movimentos do mercado, passando pelas emoções, sob a ótica dos mesmos sistemas de força e leis do movimento propostos pela ciência da mecânica[6].
Essas inovações, que vinham se mostrando exitosas e capazes de abrir campos cada vez mais largos de conhecimento, repercutiram profundamente no campo da filosofia, motivando filósofos a incorporá-las em suas doutrinas, suscitando novos problemas, tencionando o ambiente intelectual até o extremo de uma crise que justamente motivou a gestação de uma nova filosofia (“crítica”) por Immanuel Kant, no final do século 18[7]. Kant, que sempre acompanhou e escreveu sobre os desenvolvimentos dessa filosofia natural, reconheceu e saudou seus avanços, propondo-se a produzir um “choque epistemológico” na filosofia para que esta adquirisse algumas das qualidades que a “ciência natural” demonstrava como valiosas. O que ele esperava de sua proposta de revolução copernicana no âmago da filosofia era que esta se tornasse capaz, como a matemática ou a física, de alcançar conhecimentos sólidos não mais sujeitos às imediatas e intermináveis contestações de outros pensadores, como, segundo ele, era a situação costumeira na filosofia[8].

III. - Como estamos nos referindo a processos históricos, é importante assinalar que essas idéias ganharam tal prestígio que a separação e divergência de destinos entre ciência e filosofia foi se institucionalizando, inclusive nas universidades e centros de pesquisa. Contudo, como era de se esperar, o respeito à “ciência” de Galileu e Newton não era unânime e, em meados do século 18, ganharam corpo discordâncias sobre a validade do modelo ou paradigma mecanicista. Para citar um exemplo, o grande escritor e pensador alemão Goethe, que era também dedicado às “ciências” naturais, expôs críticas à teoria das cores de Newton e propôs nova abordagem dos fenômenos físicos e dos fenômenos da vida[9]. Segundo Goethe, a teoria newtoniana afirmava que as cores estão todas misturadas, “contidas” e “latentes” na luz (branca), bastando o raio de luz atravessar o prisma para que imediatamente as cores apareçam no espectro; ora, dizia Goethe, as cores não são um fenômeno físico e só aparecem quando seres humanos exercem seu sentido da visão. Independente da validade dessa concepção goethiana, ela exemplifica essa postura crítica ao modelo mecanicista ao acusá-lo de reduzir a natureza à estrita objetividade física e, com isso, excluir o sujeito do processo natural.
            Esse foi um aspecto central do movimento romântico, de enorme influência na Europa desde a segunda metade do século 18 até meados de 1840 e francamente oposto ao iluminismo, podendo mesmo ser considerado uma crítica à própria modernidade européia[10]. Dado o papel dos philosophes franceses como intérpretes do iluminismo e ainda mais por conta da resistência desencadeada pela ofensiva de Napoleão por toda a Europa, o romantismo granjeou entusiástica audiência na Alemanha e na Inglaterra, onde promoveu o chamado retorno à natureza[11]. Para os românticos, aquela ciência mecanicista possuía inúmeros defeitos, além da exclusão do sujeito humano: ela privilegiava a divisão e o seccionamento dos seres e não sua unidade, por isso tendo na análise (o grande instrumento da racionalidade cartesiana) seu principal instrumento metodológico; ela pretendia reduzir todos os fenômenos a processos mecânicos, ao invés de partir do fluxo vital que anima e enlaça sem descontinuidade toda a natureza, tanto orgânica quanto inorgânica; ela provocava o afastamento entre ser humano e natureza e, sobretudo, destinava o conhecimento ao domínio da natureza e, com isso, empobrecia o ser humano, limitado à condição de “senhor” e “amo” da natureza[12]. Mas os românticos não se restringiram à crítica, buscando desenvolver uma modalidade de pesquisa científica que atendesse aos seus princípios de unidade, totalidade, sentido e integração homem-natureza[13]. O grande geógrafo e naturalista alemão Alexander Von Humboldt foi exemplo marcante dessa corrente: para ele, a abordagem do cientista natural devia ser estética, pois a sensibilidade subjetiva do cientista que observa, descreve e interpreta os fenômenos naturais é um componente essencial que faculta alcançar o âmago da forma das coisas e das suas articulações no todo do cosmos. Ou seja, a ciência “romântica” fazia da contemplação não apenas seu método principal (oposto à “dissecação” das coisas), como sua finalidade (contemplar, e não dominar, a natureza)[14].

IV. - Paralelamente ao romantismo, desenvolveu-se, também na Alemanha, a corrente denominada de filosofia da natureza, cujo idealizador principal foi o filósofo Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling. Embora favorável ao uso da experimentação e dos procedimentos empíricos para o conhecimento da natureza, Schelling discordava do reducionismo inerente ao mecanicismo, isto é, para ele o orgânico não se reduz ao inorgânico e mecânico, pois o organicismo é a característica e propriedade fundamentais do mundo objetivo: em outras palavras, a vida não é a culminância de um desenvolvimento que começa na materialidade físico-química, mas ela é o princípio de toda a natureza. Assim, a ciência newtoniana da mecânica perderia sua condição de solo e o conhecimento da natureza teria que começar pela biologia, a ciência que trata das formas mais avançadas do orgânico, aspecto que reforça a genealogia que alguns autores detectam entre a filosofia alemã e a teoria biológica de Darwin, conforme assinalamos em nota anterior[15].

V. - Em seguida ao esmorecimento do romantismo, por volta de 1840 surgiu outra tendência que, em grande parte, retoma o espírito do iluminismo francês. A filosofia positivista concebida por Augusto Comte entendia que o êxito de certas ciências (especialmente a matemática e a mecânica ou física newtoniana) autorizava a deixar como coisa do passado a abordagem “metafísica”, como etapa historicamente superada, cabendo agora se consagrar à filosofia positiva, única baseada no espírito científico e, por isso, a ser enaltecida como o apogeu da consciência humana. Esta vertente caracterizou-se pela tentativa de elaborar uma filosofia não mais nas bases tradicionais do que se denominava “metafísica” (conhecimento puramente especulativo dado por ele como incerto e mesmo fantasioso) e sim consolidar-se com apoio nas conquistas das “ciências” (conhecimento certo, “positivo”, comprovado pela aplicação sistemática dos sentidos).[16]

VI. - É oportuno registrar a importância do romantismo e do positivismo no Brasil, não só em nossa produção artística e estética, como na filosofia em geral e da ciência em particular, além do notório envolvimento desses dois movimentos com nossa história política, da independência, do império e da república. Olhando para a atualidade de modo simplista, enquanto o positivismo parece ser a mentalidade dominante da comunidade científica, o romantismo alimenta a dissidência ou oposição ao que entendem ser a “ciência dominante”, inclusive quanto aos seus desdobramentos industriais, tecnológicos e seus efeitos ambientais[17].
            Apenas para assinalar a influência desses dois movimentos na mentalidade dominante no Brasil a respeito da ciência, mencionamos, primeiramente, Gonçalves de Magalhães, considerado o introdutor do romantismo no Brasil com a publicação em 1836 de Suspiros Poéticos e Saudades. Magalhães formou-se em medicina e buscou aperfeiçoamento científico na Europa, onde se “converteu” ao romantismo. Ainda na Europa, fundou a revista “Nitheroy” (sua cidade natal), destinada à promoção da literatura romântica e da cultura em geral, inclusive científica (em seu primeiro e único número há um artigo de astronomia sobre cometas). No Brasil, Magalhães ocupou a cátedra do Colégio Pedro II e defendia a tese de ser impossível reduzir a atividade racional e espiritual superior do ser humano a aspectos físicos e químicos, propondo a clara distinção entre “psicologia” e “fisiologia”. Em segundo lugar, transcrevemos uma passagem do clássico A Cultura Brasileira, obra de Fernando de Azevedo publicada em 1940 sob auspícios do governo brasileiro. Ao considerar as causas do atraso brasileiro nas ciências e o descompasso da cultura científica com a cultura literária, Azevedo diz o seguinte:
“Quando irrompeu entre nós, desenvolvendo-se de 1840 a 1870, a corrente do romantismo que é, na sua essência, uma exaltação lírica da sensibilidade e uma revolta contra o real quando ele perturba essa exaltação, não encontrou, nos indivíduos desprotegidos contra si mesmos, para resistir à tendência ao subjetivismo, esse hábito de reflexão e de objetividade que costumam desenvolver as ciências matemáticas, -- instrumento de raciocínio por excelência, e as ciências físicas – o instrumento, por excelência de investigação. No mundo intelectual brasileiro em que se praticavam as letras, sem o complemento e o contrapeso das ciências, o romantismo, -- esse poderoso rio de poesia que por toda parte arrastava muitas escórias nas suas ondas soberbas --, tinha de forçosamente acentuar a velha tendência colonial à literatura e ao subjetivismo, arrebatando todos os valores e devastando tudo à sua passagem como uma torrente de montanha ....”[18]

            Sabemos, por outro lado, como a sensibilidade estética pela natureza, própria do romantismo, influenciou não só nossa pintura paisagista e o romance, como alimentou as incursões de naturalistas país adentro e as discussões de homens de ciência sobre a população brasileira, sua composição e futuro, tema tão marcante em nossa história política e intelectual.
            Em relação ao positivismo, sua manifesta ênfase nas ciências “positivas” naturalmente o indispunham com o beletrismo dos românticos, porém, segundo Antonio Paim, além do positivismo ter freado “o desenvolvimento em todos os sentidos da meditação filosófica empreendida pela Escola do Recife, em nome da exaltação do saber científico”, ele tampouco “contribuiu para a criação de institutos devotados ao ensino ou à pesquisa das ciências (....) Na verdade, longe de haver acompanhado a evolução do próprio pensamento científico contemporâneo, manteve-se a mentalidade positivista brasileira adstrita a uma conceituação oitocentista da ciência”[19].
            Como última menção, as considerações abaixo ilustram a interação entre o pensamento biologizante europeu de feição darwinista, a escola literária do naturalismo e as polêmicas travadas no Brasil sobre a “formação da nacionalidade” e o problema demográfico:
“Sob o influxo do naturalismo, em geral, e do darwinismo social, em particular, o biológico foi adotado no período como modelo epistemológico cientificamente legítimo de explicação da realidade social, configurando, assim, idéias como a de uma luta universal dos organismos pela sobrevivência e, derivação necessária, de uma hierarquia natural que dividiria a humanidade em raças superiores e inferiores. Tomando esses dogmas como leis científicas, não apenas a intelectualidade brasileira, mas a latino-americana em geral, formulou uma série de diagnósticos sobre o trágico destino reservado às nações egressas do sistema colonial em função das suas constituições étnicas – teses aprendidas no Ensaio sobre a desigualdade das raças (1853) do publicista do colonialismo europeu Arthur de Gobineau (1816-82)[20].

As anotações acima tem como único objetivo despertar a atenção para “o nosso lado do palco” onde se desenrolava a história intelectual européia em torno da questão do conhecimento e da ciência, tema que convida a estudos e pesquisas cada vez mais necessárias.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

VII. - O “descredenciamento” da filosofia tradicional e (como era apodada) da “metafísica”, vistas agora como despidas de efetiva capacidade de conhecimento, levaria pura e simplesmente à sua extinção como proposta cognitiva ou à sua absorção pelas especialidades “científicas” propriamente ditas. Diante dessas possibilidades, muitos então propuseram uma finalidade própria à filosofia: a de examinar, avaliar, criticar e fornecer os fundamentos para as ciências. Desse ponto de vista, os “filósofos” disporiam daquilo que, segundo eles, faltaria aos “cientistas”, isto é, a consciência dos pressupostos do conhecimento.
Não esqueçamos que o século 19 foi profundamente marcado pelo kantismo, responsável, como dissemos, pela atitude de limitação do alcance da filosofia, visto que a razão seria incapaz de alcançar o que está além dos sentidos, isto é, a essência, a coisa-em-si ou númeno das coisas. Desse modo, um dos campos que “restavam” com legitimidade à filosofia era, além da estética e da ética, o do conhecimento. Nessa direção encontramos, a partir de 1850, os chamados neokantianos, corrente cujo propósito, segundo Farráter-Mora, foi o “de superar tanto o positivismo e o materialismo como o construtivismo da filosofia romântica mediante uma consideração crítica das ciências e uma fundamentação gnoseológica [isto é, não ontológica ou metafísica] do saber”[21].
Outra tendência importante (parcialmente afim do neokantismo) foi representada pelos chamado neopositivismo, também conhecido como empirismo lógico, e cujo núcleo gerador levou o nome de Círculo de Viena, cujo projeto, contrário aos procedimentos especulativos da filosofia alemã idealista daquele tempo, era o de constituir uma filosofia científica que fornecesse uma linguagem científica apta a evitar os pseudo-problemas da metafísica e capaz de explicitar as condições de sua verificação empírica. Destarte, além do apuro do método experimental, propunha-se agora incorporar as recentes conquistas da lógica e da matemática, cujos recursos formais eram então vistos como contribuições decisivas para esse novo espírito científico[22].

VIII. – As descobertas e teorias sobre os fenômenos da eletricidade, do magnetismo, do calor e da luz que alvoroçaram o século 19, levaram pouco a pouco ao esgotamento do que temos denominado de paradigma mecanicista da física. Nem a carga elétrica parecia se comportar de acordo com as leis da mecânica, tampouco o entendimento da luz ora como feixe de partículas, ora como onda era possível de ser alcançado com a teoria mecânica. Ou seja, o postulado da redução de todos os fenômenos naturais a princípios mecânicos, que havia sido o lema da vitória da ciência moderna, encontrava agora seus limites, o que provocou o abalo desse modelo. Por outro lado, desenvolvimentos igualmente notáveis na matemática, modificaram as concepções sobre espaço, entidade que era uma das sustentações do modelo mecânico. É verdade que as dificuldades de abordar fenômenos biológicos com a física e a química apenas também contribuiu para certo desprestígio do modelo mecanicista. Foi neste ambiente (e no qual o Círculo de Viena desempenhou importante papel) que se deu a emergência da nova física, com a apresentação da teoria dos quanta e da teoria da relatividade, cujas consequências filosóficas e epistemológicas foram inúmeras e ainda estão em pauta.

IX. - Mas a “novidade” da filosofia natural de Galileu e de tantos outros nomes do início da idade moderna não deve nos fazer esquecer que essa história, como toda história, não é feita apenas de rupturas, mas também de continuidades. Em outras palavras, algumas das fontes da “revolução científica” dos séculos 16 e 17 remontam aos séculos 14 e 13 da Europa medieval. Na verdade, se quisermos apreciar tal “revolução científica” sob o ângulo de uma continuidade histórica, seremos levados a reconhecer que as brilhantes realizações “precursoras” de sábios medievais, tanto europeus quanto os de cultura islâmica, desempenharam também papel decisivo de preservação e atualização do legado grego. Sem esse legado, seria impossível aos “filósofos naturais” da idade moderna confiar na capacidade humana de conhecer a natureza por seus próprios meios intelectuais, pois foram a filosofia e a “ciência” antigas que os exploraram e sistematizaram. Recordemos que a matemática, antes de ser usada para medir e calcular os corpos e fenômenos naturais, foi, talvez, o empreendimento mais ousado da razão helênica, fornecendo credibilidade aos procedimentos dedutivos e formais que os “filósofos” tentaram aplicar no plano discursivo, entre eles Descartes.
Por outro lado, a abordagem empírica da natureza (valorizando, sobretudo, a observação e a descrição minuciosa) é um dos legados aristotélicos e estava no cerne do método da escola hipocrática da medicina grega, cuja influência se mostrou marcante nos estudos de biologia.
Os modernos também se familiarizaram com as áreas em que os gregos fizeram convergir o procedimento teórico-dedutivo e o método empírico, como se deu na astronomia, na teoria musical ou “harmonia” e na arquitetura. Caberia ainda mencionar o papel que a teoria atômica de Lêucipo, Demócrito e Epicuro desempenhou no início da idade moderna.
Desse modo, ao nos debruçarmos sobre a novidade da revolução científica e de seus desdobramentos surpreendentes no mundo contemporâneo, somos inevitavelmente convidados a visitar os inventivos e majestosos sustentáculos que, a partir do século 7 A.C., foram sendo construídos pelos helenos.

X. - Uma dimensão da ciência que devemos mencionar é a sua chamada finalidade prática. Embora tenhamos exemplos da antiguidade greco-romana da aplicação de conhecimentos científicos em atividades eminentemente práticas (da guerra, da indústria, da arquitetura), parece que, por motivos ainda não suficientemente esclarecidos, predominou a finalidade contemplativa do conhecimento. Ora, a idade moderna começou com a saudação de Francis Bacon às invenções da bússola, da imprensa e da pólvora, como prólogo de sua teoria explícita sobre a finalidade prática das ciências[23]. Em sua utopia de uma cidade da ciência, Nova Atlântida, obra em que delineia o modelo do que posteriormente foram as grandes instituições científicas da era moderna, ele assim descreve seu propósito: “A finalidade de nossa instituição é o conhecimento das causas e movimentos secretos das coisas; e o alargamento das fronteiras do domínio humano para a realização de tudo o que for possível”[24].
No mesmo diapasão, merece transcrevermos o trecho eloqüente do Discurso do Método onde Descartes justifica o valor da ciência:
“.... Mas, tão logo adquiri algumas noções gerais relativas à Física, e, começando a comprová-las em diversas dificuldades particulares1, notei até onde podiam conduzir, e o quanto diferem dos princípios que foram utilizados até o presente, julguei que não podia mantê-las ocultas, sem pecar grandemente contra a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. Pois elas me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam úteis à vida, e que, em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza. O que é de desejar, não só para a invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer custo, os frutos da terra e de todas as comodidades que nela se acham, mas principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida; pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento, e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais avisados e mais hábeis do que foram até aqui, creio que é na Medicina que se deve procurá-lo. É verdade que aquela que está agora em uso, contém poucas coisas cuja utilidade seja tão notável; mas, sem que alimente nenhum intuito de desprezá-la, estou certo de que não há ninguém, mesmo entre os que a professam, que não confesse que tudo quanto nela se sabe é quase nada, em comparação com o que resta a saber, e que poderíamos livrar-nos de uma infinidade de moléstias, quer do espírito, quer do corpo, e talvez mesmo do enfraquecimento da velhice, se tivéssemos bastante conhecimento de suas causas e de todos os remédios de que a Natureza nos dotou”[25].

            Tudo isso é mais significativo ainda se lembrarmos as palavras de Aristóteles no início da Metafísica ao dizer que os seres humanos só puderam se dedicar efetivamente ao saber puramente contemplativo depois de terem satisfeito as demandas básicas da sobrevivência e do conforto:

“.... E também é lógico que, tendo sido descobertas numerosas artes, umas voltadas para as necessidades da vida e outras para o bem-estar, sempre tenham sido julgados mais sábios os descobridores destas do que os daquelas, porque seus conhecimentos não eram dirigidos ao que é útil. Daí resulta que, quando já se tinham constituído todas as artes desse tipo, passou-se à descoberta das ciências que visam nem ao prazer nem às necessidades da vida, e isso ocorreu primeiramente nos lugares em que primeiro os homens se libertaram de ocupações práticas. Por isso as artes matemáticas se constituíram pela primeira vez no Egito. De fato, lá era concedida essa liberdade à casta dos sacerdotes”[26]

            E, mais adiante:

“De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração [thaumatzein], na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da Lua e aos do Sol e dos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas admiráveis. De modo que, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. E o modo como as coisas se desenvolveram o demonstra: quando já se possuía praticamente tudo o de que se necessitava para a vida e também para o conforto e para o bem-estar, então se começou a buscar essa forma de conhecimento. É evidente, portanto, que não a buscamos por nenhuma vantagem que lhe seja estranha; e, mais ainda, é evidente que, como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo e não está submetido a outros, assim só esta ciência, dentre todas as outras, é chamada livre, pois só ela é fim para si mesma”[27].

            Desse modo, não é possível entender a emergência e o desenvolvimento da ciência moderna sem atentar para essa profunda mudança de rumos que entronizou a finalidade prática como um componente essencial do saber científico. Ainda nos reportando a Francis Bacon, ele diz que “o império do homem sobre as coisas se apóia unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão obedecendo-a”[28]. Essa vertente tecnológica (isto é, do saber técnico propriamente dito) só pode se afirmar porque a idade moderna começou reduzindo significativamente a distância entre o “alto saber” do filósofo natural e o “saber vulgar” do artesão e homem prático através, como diz o historiador da ciência Paolo Rossi, através de um “processo que levou a uma nova valorização das artes mecânicas e do trabalho dos técnicos, que culminou no reconhecimento da função exercida pelos artesãos e pelos engenheiros no seio da cultura e da sociedade”[29]. E acrescenta Rossi:
“.... esta nova valorização – produto de uma nova realidade histórica – tornou possível a colaboração entre cientistas e técnicos e a combinação da técnica e da ciência que está nas próprias raízes da grande revolução científica dos seiscentos. A direção do movimento científico passará para os engenheiros, para os experts, para os cavalheiros ‘de espírito científico’ do século XVII. Os órgãos da nova cultura não serão doravante as universidades, mas as sociedades científicas e as academias. O método científico não será um fim em si que as investigações científicas se limitem a ‘ilustrar’; a ‘prova prática’ terá um efeito decisivo até na elaboração das teorias mais gerais”[30].







[1] Encontramos na Encyclopaedia Britannica a seguinte definição de filosofia da ciência: “A filosofia da ciência tenta primeiramente elucidar os elementos envolvidos na investigação científica -- procedimentos observacionais, padrões de argumentação, métodos de representação e cálculo, pressupostos metafísicos -- e então avaliar as bases de sua validade sob os pontos de vista da lógica formal, da metodologia prática e da metafísica”. “Philosophy of science”, in “Philosophies of the Branches of Knowledge”, Macropaedia, Ency. Brit., ed. 1980
[2] Cf. em Platão, Teeteto: “Por isso, quando alguém forma opinião verdadeira de qualquer objeto, sem a racional explicação, fica sua alma de posse da verdade a respeito desse objeto, porém sem conhecê-lo. Pois quem não sabe nem dar nem receber explicação de alguma coisa, carece do conhecimento dessa coisa; porém se a essa opinião acrescentar a explicação racional, então ficará perfeito em matéria de conhecimento”.
[3] Pode-se denominar Revolução Científica ao período que simbolicamente inicia em 1543 com a publicação do livro De Revolutionibus Orbium Coelestium (Sobre as revoluções das esferas celestes), de Nicolau Copérnico, e conclui em 1727, ano do falecimento de Isaac Newton. Este teria sido o período em que foram elaboradas e assimiladas as grandes concepções sobre o mundo natural (sobretudo as novas concepções da Astronomia, da Física e da Matemática, mas também algumas importantes descobertas na Medicina e ciências do organismo). Porém, mais que propriamente suas concepções da natureza, foi neste período que se exercitou, apurou e consagrou o novo modo de conhecimento, que pode ser definido pela síntese entre empirismo experimental & matematização.
[4] Não é demais lembrar que o tema do movimento foi um dos mais inquietantes da filosofia grega: basta mencionar as idéias de Heráclito, a polêmica dos Eleatas, especialmente os paradoxos de Zenon de Eléia, ou a Física, de Aristóteles.
[5] A suposição de uma força (a gravidade) responsável por estabelecer as relações de atração e de influência recíproca entre todos e quaisquer corpos do universo, desde grandes e distantes astros até partículas microscópicas, e, além disso, a perfeição com que se podia calcular a ação dessa força, foram ingredientes de um entusiasmo e admiração que hoje temos dificuldade de sentir no mesmo grau. O universo, cujas dimensões revelavam-se bem maiores do que antes se admitia, podia agora ser contemplado de modo unificado e principalmente como obedecendo a leis absolutamente racionais. Para alguns, era a demonstração da sabedoria divina ao criar o mundo com tal racionalidade, enquanto, para outros, era a prova de não ser mais preciso invocar a divindade para explicar o mundo, podendo-se confiar na razão humana para a compreensão do mundo.
[6] Deve-se a Descartes a primeira formulação sistemática da abordagem mecânica da natureza. Porém, no decorrer do século 18 o prestígio científico do cartesianismo cede à ascensão da filosofia newtoniana, cuja divulgação na França por Voltaire e Émilie du Châtelet contribuiu para torná-la o núcleo da racionalidade científica do iluminismo.
[7] Na Introdução à Crítica da Razão Pura, Kant define a crítica assim: “De tudo isso resulta a idéia de uma ciência especial que pode denominar-se Crítica da razão pura. (....) Uma tal ciência teria que se denominar não uma doutrina, mas somente Crítica da razão pura, e sua utilidade seria realmente apenas negativa com respeito à especulação, servindo não para a ampliação, mas apenas para a purificação da nossa razão e para mantê-la livre de erros, o que já significaria um ganho notável”. Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, ed. Nova Cultural, SP, 1996, trad.Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger, Introdução, VII, página 65
[8] No prefácio à 2ª. Edição da Crítica da Razão Pura, Kant afirma que a Ciência da Natureza “foi pela primeira vez levada ao caminho seguro de uma ciência, já que por muitos séculos nada mais havia sido que um simples tatear”, atribuindo tal resultado ao cumprimento da proposta “do engenhoso Bacon”, em outras palavras, “por uma revolução da maneira de pensar que a precedeu subitamente”. É essa “revolução” que ele agora propõe seja exercida no campo da “metafísica”, que esta “imite”, nesse aspecto, a ciência da natureza, “ao menos como tentativa”. O motivo de seu apelo está no diagnóstico que faz da metafísica, conhecimento racional que “não teve até agora um destino tão favorável que lhe permitisse encetar o caminho seguro de uma ciência, não obstante ser mais antiga do que todas as demais”. Desse modo, ao concentrar a filosofia em uma tarefa estritamente crítica, o propósito de Kant não é o de acrescentar novos conhecimentos, mas o de responder à pergunta: é possível confiar na razão? Ora, para restaurar e renovar tal confiança na razão é preciso depurá-la e conscientemente restringir seu domínio, enfim, renunciar a uma filosofia onipotente e senhora de todos os campos de conhecimento em favor de outra mais modesta, em troca, porém, mais clara, firme e mesmo útil em garantir fundamentos para o que (limitadamente) se pode conhecer e para a orientação moral humana.
[9] Uma das fontes principais da preocupação filosófica com os fenômenos da vida foi a “terceira crítica” elaborada por Kant e apresentada em sua Crítica do Juízo, em 1790, obra de repercussão imensa e complexa, tanto no campo da biologia como no da estética, sobretudo por conta do conceito de finalidade. Goethe reconheceu o impacto dessa obra em seu pensamento e lhe atribuiu o mérito de afastar as “absurdas causas finais” do estudo sobre a natureza. (Cf. o prefácio de Marcos Giannotti à Doutrina das Cores, de Goethe, ed. Nova Alexandria). Há, inclusive, quem identifique um elo histórico entre a Crítica do Juízo de Kant, a filosofia da natureza alemã e as idéias de Darwin. (Cf. Robert Richards, “The impact of German Romanticism on Biology”[http://home.uchicago.edu/~rjr6/articles/Idealism%20&%20biology.pdf]
[10] Segundo Michael Löwy e Robert Sayre, “o romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna, em nome de valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno). Podemos dizer que, desde sua origem, o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro da melancolia’ (Nerval)”. In Michael Löwy e Robert Sayre, Revolta e Melancolia – O romantismo na contramão da modernidade, ed. Vozes, Petrópolis, 1995, trad. Guilherme João de Freitas Teixeira, página 34
[11] Como se sabe, o suíço Jean-Jacques Rousseau, um apaixonado pela botânica, anunciou esse “espírito romântico”, seu desgosto com o “progresso” e a “modernidade” e seu encanto pela natureza e pelo é que é “natural”. “Para Rousseau, a comunhão com a natureza afasta a pessoa da detestável sociedade de homens competitivos, e liberta-a para alegrar-se abertamente num mundo que expõe seus segredos a quem quer que lhe preste honesta atenção, despojado de egoísmo ou de propósitos mercenários”. (in N. J. H. Dent, Dicionário Rousseau, ed. Jorge Zahar, Rio, 1996, trad. Álvaro Cabral, verbete “natureza”)
[12] Um dos produtos dessa visão amarga e pessimista da ciência foi o romance de Mary Shelley, Frankenstein: ou o Moderno Prometeu, nome, aliás, do cientista e não do “monstro”, como acabou conhecido. Publicado em 1818, tornou-se a fonte mais inspiradoras e persistentes da cultura de massas, assim como o emblema da desconfiança em relação ao “cientista” arrostado pela paixão do conhecimento e do poder sobre a natureza.
[13] Embora Goethe tenha sido crítico contumaz dos românticos, a ele devemos a expressão clássica desse “dissabor” pela ciência que está na passagem célebre do Fausto, quando Mefistófeles sentencia: “Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, e verde é a árvore dourada da vida”. Segundo esse ponto de vista, esposado por muitos dos românticos, a ciência renunciava ao principal da vida em troca de um saber estático e utilitarista e, sobretudo, profanador da natureza.
[14] Muito interessante, a respeito, o livro de Lúcia Ricotta, Natureza, Ciência e Estética em Alexander Von Humboldt, ed. Mauad, Rio, 2003
[15] Desde o século 17 havia quem rejeitasse a pertinência do mecanicismo, especialmente o cartesiano, para explicar os fenômenos vitais. O vitalismo foi um conjunto de correntes muito variadas (desde as de inspiração hermética até as mais cientificistas) cujo traço comum é supor a existência de um princípio vital ou élan vital, irredutível a mecanismos fícico-químicos e presente com exclusividade na matéria viva. O vitalismo, como era de esperar, exerce até hoje influência na medicina e foi na época de seu florescimento na Alemanha que Samuel Hahnemann (1755-1843) concebeu a homeopatia. Cf. Regina Andrés Rebollo, Ciência e Metafísica na Homeopatia de Samuel Hahnemann, ed. Associação Filosófica Scientia Studia-FAPESP, 2008
[16] Para Comte, antes de alcançar o “estado positivo”, o espírito humano percorre longamente o “estado teológico” e o “estado metafísico”: “No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. – No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que a simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente”. Auguste Comte, Curso de Filosofia Positiva, Abril Cultural, 1ª. Ed., SP, 1973, trad. Arthur José Giannotti, página 10 (o negrito é nosso)
[17] A história das ciências no Brasil mostra os efeitos profundos da postura antimoderna e de resistência à ciência por parte da mentalidade dominante na península ibérica. Assim, somente com a reforma do ensino superior promovida por Pombal e com as incursões de naturalistas europeus em terras do Brasil é que, de fato, começa uma história contínua das ciências entre nós, destacando-se figuras como Bartolomeu Lourenço (com suas experiências pioneiras do aeróstato), o grande naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (autor da Viagem Filosófica, onde registrou suas viagens entre 1783 e 1792 pelo Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, reunindo acervo natural e documental tão vasto que nem ele mesmo conseguiu examinar por completo) ou José Bonifácio de Andrada e Silva (mineralogista e engenheiro de minas respeitado na comunidade científica européia).
[18] Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira – Introdução ao estudo da cultura no Brasil, ed. UnB, 4ª. Ed., Brasília, 1963, página 394
[19] Antonio Paim, História das Idéias Filosóficas no Brasil, ed. Grijalbo, SP, 1967, página 198
[20] André Botelho, “Cientificismo à brasileira: notas sobre a questão racial no pensamento social”, in http://www.achegas.net/numero/um/andre_b.htm
[21] Ferráter-Mora, Diccionário de Filosofía, artigo “Neokantismo”
[22] Ferráter-Mora, op. cit. , verbete “Círculo de Viena”
[23] “Vale também recordar a força, a virtude e as consequências das coisas descobertas, o que em nada é tão manifesto quanto naquelas três descobertas que eram desconhecidas dos antigos e cujas origens, embora recentes, são obscuras e inglórias. Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação. Daí se seguiram inúmeras mudanças e essas foram de tal ordem que não consta que nenhum império, nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder e exercido maior influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos mecânicos”. Francis Bacon, Novum Organum, col. Os Pensadores, ed. Abril Cultural, 1ª. Ed. , SP, 1973, trad. José Aluysio Reis de Andrade, I, CXXIX, página 94
[24] Francis Bacon, New Atlantis, ed. Encyclopaedia Britannica, coleção Great Books, vol. 28, p. 210
[25] Descartes, Discurso do Método, Parte VI, in Descartes, Obra Escolhida, ed. DIFEL, SP, 1962, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior, pp. 91-92
[26] Aristóteles, Metafísica, livro I:981b:15-25, trad. em português de Marcelo Perine a partir da tradução do grego de Giovanni Reale, ed Loyola, 2002
[27] Aristóteles, id. ib., 982b:10-25
[28] Francis Bacon, Novum Organum, ib. página 94
[29] Paolo Rossi, Los Filósofos y las Máquinas1400-1700, ed. Labor, Barcelona, 1966, trad. José Manuel García de La Mora, página 39
[30] Paolo Rossi, op. cit., página 40. Nesta passagem, Rossi se reporta a Alistair Cameron Crombie (1915-1996), grande historiador da ciência, de naturalidade australiana, autor de clássicos como Augustine to Galileo: The History of Science A.D. 400 – 1650 e Robert Grossteste and the Origins of Experimental Science, 1100-1700

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